segunda-feira, 23 de junho de 2008

Longe de Casa

Estava voltando para casa. Um sentimento de nostalgia imperava dentro de mim. Sabia que sentiria saudades daquele lugar, mas também estava louco para rever minha família, meus amigos, meu país. Numa atitude um pouco mórbida, decidi ir de metrô para despedir-me de um raro e estranho ambiente que acabei freqüentando durante quase um ano. Sempre tinha evitado tomar o transporte público de modo rotineiro. Preferia ir a pé a qualquer lugar, caminhando por até mais de meia hora para chegar ao meu destino, a ter que tomar um ônibus. Mas durante um período naquela cidade quis experimentar o que tanto tinha evitado na minha vida. Queria estar em contato próximo e real com o ambiente gerado pelas mais de 4 milhões de pessoas que usam o metrô diariamente numa das maiores cidades do mundo. É como se fossem quatro cidades de Campinas tomando o metrô a cada dia.

Aproximando-me da entrada já senti aquele cheiro característico da multidão. Usar as escadas com a mala tão pesada, cheia de lembranças depois de um ano e meio de tantas aventuras não foi fácil. Não é permitido entrar com malas no metrô, o que é bastante razoável devido à quantidade de pessoas que o freqüentam, mas nos domingos é feita uma exceção. Passei a roleta, onde tive que pagar o correspondente a não mais do que cinqüenta centavos de Real, desci mais dois lances de escada com a ajuda de um aparelho usado geralmente para os deficientes físicos, mas que no meu caso foi usado para ajudar-me a levar a mala sem muito sacrifício. Depois de passar por baixo dos trilhos, subi novamente dois lances do outro lado com a ajuda de um aparelho igual ao que acabara de usar.

Como sempre, não tive que esperar muito até que chegasse o próximo trem com seus vagões cor-de-laranja e pneus negros, como os de caminhão. Disseram-me uma vez que tinham trocado as antigas rodas de ferro por pneus de borracha devido ao barulho que faziam as rodas. Quem sabe? Segui então rumo a “Indios Verdes”. No caminho, os nomes das estações nos mostram que estamos em um lugar que já passou por várias mudanças revolucionárias e onde as personagens importantes da sua história são sempre recordadas: “Insurgentes”, “División del Norte”, “Zapata”, “Angel de la Independencia”, “Revolución”, “Niños Héroes”, “Reforma”, “Guerrero”, “Juárez”, “Hidalgo” etc. É estranho ver que quando as crianças e jovens são interrogados, nunca se lembram dos seus verdadeiros heróis, mas somente do Batman, do Spiderman, do Superman, do Não-sei-o-que-lá-man e até mesmo o Chapolín Colorado é esquecido. Talvez os heróis e eventos citados nos nomes das estações não tenham tido tanto sucesso, ou talvez tenha lhes faltado um pouco de propaganda; ou ainda, por serem heróicos de verdade, não se vendem; ou não se vendam...

Chegando à primeira das estações que pertencem à zona da pirataria, entrou um sujeito com o típico amplificador escondido numa mochila e colocou para tocar num volume quase ensurdecedor o mais novo sucesso de Vicente Fernández, que com sua voz de tenor canta: - Aaaaai, ai Amoooooor, Aaaaaaai, ai que Dolooooor... Na seguinte estação o sujeito saiu e entrou outro, também com uma mochila que escondia um amplificador, num movimento sincronizado que estava acostumado a ver. Este último colocou para tocar músicas de Valentín Elizalde, cantor de “corridos” que foi assassinado havia pouco tempo com sessenta tiros no peito, devido a uma desavença com narcotraficantes.

Fora da zona de pirataria sempre começam a entrar pedintes. Lembro de deficientes visuais, malabaristas, músicos, outros nem tanto, mas que também cantam ou tocam um instrumento em troca de umas moedinhas, crentes que gritam partes da Bíblia em troco de nada, ou melhor dizendo: da própria - e da nossa - salvação. Por duas vezes vi um rapaz que levava cacos de vidro, espalhava-os no chão e dava cambalhotas, sem camisa, em cima dos cacos. Era assustador! Outra vez tive a sensação de ir do céu ao inferno em um piscar de olhos, pois estava escutando um rapaz tocar divinamente só com uma guitarra elétrica “Dust in the wind”, do grupo Kansas, até que entrou um garoto com essas típicas mochilas para esconder os amplificadores e pôs no último volume: - Y es por tiiiiiii, que yo vivo soñando volver a empezaaaaaar... Menos mal que o garoto percebeu logo que o rapaz já estava ali antes dele e parou a sua música, pelo menos até que o rapaz terminasse o seu show. Cada um fez o seu trabalho ao seu tempo, devido a uma mágica comunicação tácita entre os dois.

Enquanto lembrava de tudo isso, comecei a observar um senhor cego, que caminhava entre as pessoas tateando o que vinha pela sua frente com uma mão e sacudindo uma vasilhinha com moedas na outra. Naquele momento o trem se agitou mais do que de costume por alguns instantes, suficientes para muitas pessoas perderem o equilíbrio, gritando; de repente, parou de maneira brusca. Quando me recuperei do susto, vi que o senhor cego estava sendo levantado por um casal de namorados que instantes atrás estava se amassando bem em frente de onde ele caiu. Ninguém sabia o que estava acontecendo, as luzes começaram a falhar, crianças estavam chorando, mas não havia muito o que fazer senão esperar. Provavelmente tinha acontecido alguma pane ou algum pneu havia estourado.

Minutos depois chegaram funcionários que abriram as portas e nos mandaram descer do vagão e caminhar em direção a uma saída de emergência que ficava um pouco adiante de onde estávamos. Todos se perguntavam, conformados em chegar ao seu destino atrasados, o que teria acontecido com o metrô. Eu ainda ia levando o peso das minhas lembranças e meus apegos naquela mala de uns trinta quilos que mais pareciam cinqüenta, mas no meio do caminho ficamos sabendo que o pior havia acontecido: a cidade tinha sido totalmente abalada por um terremoto. Tínhamos que sair rápido do túnel do metrô, pois havia perigo de desabamento! Quando tive que decidir entre o apego à minha vida e a todos os meus outros apegos, deixei, finalmente, a mala para trás.

Chegando à superfície, pouco a pouco fui percebendo todos os estragos. Canos jorrando água, semáforos apagados deixando o trânsito ainda mais caótico do que o de costume, mulheres chorando e cada vez mais pessoas chegando para tentar retirar sobreviventes do meio dos escombros de prédios que já haviam resistido a muitos outros tremores, mas não àquele último, que tinha sido demasiado. Entre oito e nove graus na escala Richter. A única coisa que eu pensava era em ir para o aeroporto e tomar meu avião rumo a casa. Tudo parecia um terrível pesadelo. Depois de um tempo andando perdido pelas ruas, encontrei uma avenida com tráfego livre e com muita sorte parei um taxi. - “¡Aeropuerto Benito Juárez, por favor!” - pedi desesperado. - “¡Claro que sí, señor!” - respondeu amigavelmente o taxista. No caminho ao aeroporto, pensava na minha mala perdida e tudo o que ela continha, mas pensava sobretudo na minha casa, na minha família, em voltar ao meu país. Numa atitude totalmente egoísta, eu acreditava precisar mais de tudo isso do que as pessoas no meio daquela tragédia poderiam necessitar de mim.

Mas os heróis não escolhem o seu destino. Entrando no aeroporto descobri que todos os vôos haviam sido cancelados. Triste e com raiva, entendi que o melhor que podia fazer era voltar para a cidade e ajudar a encontrar vida no meio dos escombros.